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O gosto de ferro não era o bastante pra me distrair da dor nos dentes.

Me lembrei que tinha lido em algum lugar que metais não têm cheiro, e que na verdade são os nossos óleos naturais que aí sim, em contato com a pele, provocam uma corrosão leve e liberam... hm... aldeídos e cetonas – e eles que soltam esse "cheiro de metal" que a gente fala.

... Mas de onde vem o gosto? Não me lembro se tinha alguma coisa a ver com saliva também. Parece provável. O processo digestivo também começa com um tipo de corrosão. Decomposição?

Na quarta série lembro que errei uma pergunta numa prova: "onde começa o processo digestivo?"

Hoje em dia acho que chama digestório. Muitas coisas mudaram de nome desde meu tempo de escola. Se eu fosse professor também faria a mesma coisa. Constantemente mudar tudo pra garantir que nenhuma máquina vai me substituir.

Ouço isso desde pequeno também, mas ainda não vi máquinas substituindo pessoas. Pelo menos nos lugares em que a gente sentiria falta das pessoas. Né?

Me veio à cabeça aquelas moças e rapazes, jovenzinhos, que ficavam distribuindo e pegando os tickets de estacionamento do shopping. Abriu a janela, "bom dia" (apertando os olhos, sol forte), entrega ticket, aperta botão, levanta a cancela – às vezes entrega um folheto com alguma promoção dando um carro zero, que ficava numa praça de alimentação no próprio shopping. Como tiravam os carros lá de dentro? Como colocavam não me dá curiosidade não, sempre é mais fácil colocar do que tirar.

Mas aí esses rapazes, moças, foram substituídos – subtraídos. E aí agora era só motorista e cancela. Durante um tempo tinha aquele speakerzinho, dando "boas compras" ou qualquer despautério assim. Às vezes era gravado também. Máquinas gentis. Será que as cancelas sentiam a degradação do trabalho e seu papel social?

O ponto é que, assim como os rapazes e moças foram trocados por dispositivos sem seguridade social, o sistema digestivo-agora-digestório também trocou de nome, mas ainda sendo o mesmo por dentro.

... Eu acho.

Naquela época eu ainda não sentia tanta azia. Nem achava normal vomitar o dia todo uma vez por semana. Meus pais eram muito atenciosos com minhas restrições alimentares, não faltando comida saudável e balanceada.

E aí, eu, na quarta série, ainda sem uma relação torta com comida, fiquei decepcionado por descobrir que na verdade o processo digestório não começava no estômago, mas na boca. A gente mastiga, umas glândulas quebram o... amido. A enzima era... amilase.

Sorri por ainda lembrar de bastante coisa da escola. Prestava muita atenção nas aulas de biologia.

Mas apesar disso, não sei de onde vem o gosto de metal. Não aquele que a gente sente quando faz um exercício muito intenso não (senti esse muito nos meus primeiros meses); esse eu pesquisei e vi que era um negócio até meio assustador, que os alvéolos do pulmão rompem e aí um pouco de sangue vai pras vias aéreas e pra boca.

Tá, formalmente, a explicação pra esse gosto sempre vem do sangue mesmo. Não foi o que quis dizer. Parece óbvio que "morango tem gosto de morango", mas é difícil explicar exatamente o que é "gosto de morango". Pra alguém que nunca comeu morango. Como que a gente "sente" o "gosto de morango". Apesar de que coisas "sabor morango" tem um gosto nada a ver com a fruta morango.

Não sei explicar. Pesquisar isso mais tarde.

Um guincho abafado e gorgolejante me assustou e quebrou minha linha de pensamento. Não satisfeito em me dar dor de dente, ainda quer me dar dor na consciência. Como se nós dois precisássemos passar por essa experiência de novo.

Quase pensei "falta de consideração", mas lembrei de uma citação que vi em uma imagem, tão bonita, que acho que alguém mandou em algum grupo:

"Seja gentil, porque todos à sua volta estão travando suas próprias batalhas."

Fechei os olhos e repeti como um mantra, e acalmei a mente. Limpei toda a misantropia internalizada, e comunguei com a humanidade. Acometido de compaixão, tomei-o pelos dois braços, virei-o de bruços, e depositei meu peso, com o joelho direito e o pé esquerdo, sobre sua lombar. Aproveitando que com isso passou a espernear menos, aproveitei e segurei firmemente seus pulsos.

Dessa vez, fazendo um esforço pra não errar de novo, medi com os olhos a distância da base da mandíbula até a jugular. Tive que fazer um pouco mais de força, porque ainda se debatia com a cabeça – em cada investida besuntava um pouco mais o rosto empapado em lágrimas e sangue vermelho vivo, grudado nos cabelos castanhos.

Olhando para baixo, vi a marca anterior que deixei e entendi o motivo da dor de dente. Tinha mordido o osso da clavícula.