Ernesto

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– Mrewhm.

– Já vai, já vai… Segura que tá difícil de – hrmf – abrir…

Com um nível de concentração que teria feito minhas veias da testa saltarem, finalmente consegui terminar de desenroscar o pote de ração. O cheiro de soja processada e uma dúzia de aditivos químicos subiu pelo ar, para agravar a aflição de Ernesto.

– MWEHHOWMMM.

– Calma, filho! Agora que é a parte difícil…

O pote estava, como de costume, em uma prateleira na área de serviço; A uns dez segundos da tigelinha de Ernesto, posicionada no chão da cozinha em uma posição estratégica que o permitisse olhar para a varanda pela porta de vidro - sua televisão, desde a instalação do bebedouro dos beija-flores - e que também me permitisse vê-lo comendo enquanto deitado na cama no meu quarto. Ernesto tinha um histórico de muita dificuldade de ganhar peso, devido aos problemas que desenvolveu na rua, e me dava tranquilidade saber quando ele estava comendo.

Por isso, Ernesto devia estar tendo dificuldade em entender o porquê de ter sua tigela arrastada até a área de serviço. Ao longo da última meia hora, também pensei se não seria mais fácil trazer o pote até a cozinha como de costume, mas desisti depois de múltiplas tentativas em vão de levantar o potinho vazio do chão.

– Devagar… devagar…

– Mwehm?

– Miau, filho. Deixa o papai fazer uma pausa rapidinho.

Parei e “respirei” fundo. Minhas mãos e braços não doíam do esforço, mas me sentia como se tivesse corrido uma meia maratona.

– Terminar logo com isso pra você papar e o papai poder voltar a descansar, tudo bem? Imagino que a tia Leda já já deve estar dando as caras, né?

– Mew.

– Não faz essa cara que tia Leda te ama. Quem você acha que te deu aquela fonte de água cara e chique que você usou só duas vezes, hein?

– Rrr.

– Pois ela não vai ficar três dias sem receber foto sua não. Chama até polícia, vai vendo.

Recuperando o fôlego, me ergui novamente, determinado a fazer bom uso do tempo restante. Levantar o pote? Completamente impossível. Mas empurrando um pouquinho ele devia cair no chão da área. Devia ter pensado nisso logo antes de ter trazido a tigela. Depois Leda arruma.

– MnerhweAHWM!

– Vou gritar junto também pra ver se ajuda - MIAU, MIAU! Eita, parece que não adianta, né? Parece que gritar pro céu não resolve nossos problemas, né filho?

Ernesto me fitou com olhos de reprovação como que entendesse Português.

– … Senti sua falta, filho.

O pote de ração, cambaleando na beira da prateleira, tombou ao chão, espalhando centenas de grãozinhos marrons pelo azulejo branco sujo da área de serviço. Ernesto, imediatamente, se apressou a devorar os que caíram mais perto de si, em mordidas crocantes e barulhinhos de mastigação.

– Come com calma, cara. Vai vomitar.

Olhei-o com ternura. Suas manchinhas pelo torso, sua cauda listrada. O pé esquerdo de trás, que não tinha um dedinho. Ernesto podia não ser modelo de propaganda de pet shop, mas aos meus olhos era o ajuntado de pelo sem neurônios mais lindo que existia.

— O contrato foi atendido.

Olhei para trás, e me lembrei da presença do meu acompanhante, que colocava seus braços finos, compridos e escuros ao redor do meu torso, se enveredando como uma boa constritora.

– Não acha que eu devia ficar de olho mais um tempo? No caso dele, sei lá, esquecer que a comida tá aqui e ir procurar lá na cozinha?

Mirei sua cabeça, entortada e encostada no teto, no fundo dos seus olhos ocos e arregalados. Sua boca, seca e sem lábios, moveu-se lentamente, e no fundo de minha cabeça ouvi sua resposta:

– O contrato foi atendido.

– Bleh. Chatão.

– Retorne.

– Tô ligado, tô ligado. Beijo, Ernesto, se comporta.

Por memória muscular, fui fazer um carinho em seu lombo, apenas para ver minha mão o atravessando.

Me levantei, dei um novo suspiro, e voltei para meu quarto, acompanhado de meu observador. Me pus ao pé da cama, e internalizei, com bastante sobriedade, o que via na minha frente.

Um homem, ou o que restava dele, debaixo do lençol. Sua pele esticada e amarelo-esverdeada, a boca escancarada e os olhos entreabertos. Centenas de pequenas larvinhas, devorando seus tecidos moles, entrando e saindo de seu nariz. Ao centro da cama, uma mancha escura com odor de fezes e amônia. O ventilador de teto, ainda girando, espalhava o cheiro azedo pelo quarto.

Meu corpo. Pelo menos Ernesto ainda tinha ração.